sexta-feira, 22 de maio de 2009

SOMBRAS


UMA FRINCHA NA JANELA

«O primeiro quarto da minha vida, que conheci e foi conhecido como quarto de mim, dava para um saguão. O Sol nascia nas traseiras do prédio desse quarto e bastante cedo passava por cima do dito saguão, iluminando-o vagamente. Quando eu acordava, sabia que era amanhã porque, no alto das portadas de madeira da janela que me ficava diante da cama (num pequeno espaço rectangular que a separava do tecto), em vez do escuro breu, se desenhava um pálido brilho, mais luminoso no centro, mais sombreado nos flancos. Posta a situação do quarto, a sombra era o que mais se dissolvia, mas a dissolução era tanta que por força havia de haver alguma luz, luz que só podia ser a luz do dia.
Quando acordava antes que me acordassem, ou quando estava doente, essa sombra era, literalmente, uma sombra de nino, como se chama a uma pessoa que persegue outra e não a larga. Mas nenhuma pessoa eu via. Via era uma orla marítima, com uma estreita tira de areia branca e um mar calmíssimo a perder-se no horizonte. E, do lado esquerdo, onde a zona penumbrosa era predominante, vinha uma montanha com a forma de uma ursa, repousando focinho e patas dianteiras no mar-chão. Demasiado bem conhecia essa montanha. Até pelo nome de Outão a conhecia. Não tinha dúvidas. Era a Arrábida que me vinha visitar em fotografia a preto e branco, ou em filme a preto e branco, porque a imagem se animava e nunca era a mesma pelo mesmo tempo. Nunca ninguém, crescido, me acreditou ou acreditou em tais visões. E, como mais ninguém partilhava esse quarto de criança, só em mim confiava para essa luminosa identificação. Visualmente, era uma visão pacificadora. Mas, às vezes, angustiava-me.»

*****
(...)
«Assim, de praias da Arrábida o que resta? Uma língua de areia a meio do Portinho, cheia de barracas e palhotas de colmo, onde me dizem que em Julho e Agosto se juntam caravélicas multidões.»
(…)
«Sozinho, percorro eu esse melancólico carreiro, quando numa volta dele, o telefone desata a tocar.»
(…)«Do outro lado, uma voz feminina pedia desculpa pelo “incómodo”, mas não sabia se eu sabia que tinha morrido “o actor Paul Newman”. Eu não sabia. Então perguntou-me se eu não queria dar um depoimento (era de uma rádio) sobre “como me situava face à morte do actor Paul Newman “. “Como me situava?” respondi e perguntei atónito. Apeteceu-me dizer-lhe que me situava numa curva de caminho escabroso, mas, como nos vamos habituando a tudo, aceitei o tal comentário, debitando meia dúzia de lugares-comuns ou de clichés feitos. Acho que até cheguei aos jeans e aos olhos azuis . No fim, a senhora, menina ou lá o que fosse saiu-se com esta:”Mas lamenta ou não lamenta a morte do actor?”. Só nessa altura desliguei.»

*****
Foram palavras escritas por João Bénard da Costa, excertos de duas crónicas suas, no "Público".
Uma no dia de Natal de 2003, a outra, no Verão passado.

E hoje não me apeteceu colocar aqui o habitual clip de cinema.

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12 comentários:

Maria disse...

E eu percebo-te. Porque hoje o dia é de Bénard da Costa. O homem do Cinema neste país...

Um beijinho, Ana

poetaeusou . . . disse...

*
que melhor clip
poderias colocar ?
,
As pedagogias que desvalorizam a função da memória, ou se batem contra o «ensino memorialista», são as responsáveis pela incultura dominante e pela perda do sentido de Tempo e de História, sem a qual ninguém se acha e os portugueses muito menos.
,
in-J.Benard da Costs,
,
Ilumina os nossos Realizadores
de Cinema, peço - te . . .
,
cinéfilas conchinhas, deixo,
,
*

Ana disse...

Maria,
Sempre chega o dia em que as pessoas se vão.
Algumas fazem mais falta que outras e refiro-me, neste caso, à cultura do nosso país.

Beijinho e bom fim de semana

Ana disse...

Poeta,
Excelente frase foste buscar, para o teu comentário.
Quanta verdade!

Alguns dos nossos realizadores nem com um empurrãozinho lá vão.
Mas também já há muito bom cinema português.
Continua é a ser escasso.

Beijinho

isabel mendes ferreira disse...

abraço.

Marta disse...

Compreendo-te tão bem ANA!

beijo e xi-coração

Ana disse...

Isabel,
Quando uma pessoa assim desaparece, os que amam o cinema sentem-se um bocadinho órfãos.

Beijinho

Ana disse...

Marta,
Como se eu não soubesse...

Beijinho

Cristina Caetano disse...

Gostei! :) Conheço o sentimento, sempre que um artista excepcional morre, me sinto órfã.

Beijinhos e bom fim de semana.

Ana disse...

Pois é, Cris, fazem falta à nossa vida.

Beijinho e bom fim de semana

Duarte disse...

Fizeste bem, pois deixaste-nos uma narração maravilhosa, que me fez recordar os eucaliptos que apreciam e se esgueiravam por cima do telhado da casa dos meus avós, quando os contemplava desde a cama, mais tardes foram os JU52 que iam para Pedras Rubras.

Beijinhos de boa amizade

Ana disse...

Duarte,
Ternas são as recordações de infância que guardamos conosco ao longo da vida.

Beijinho